O conflito na Ucrânia e o espaço: aspetos jurídicos e as consequências para a cooperação internacional

SPARC/ March 29, 2022/ Coordenação, Direito Espacial e Outros Ramos do Direito, Linhas de Investigação

João Nuno Frazão

O atual conflito na Ucrânia é o principal tema das agendas europeia e internacional. Pela sua complexidade, todos os domínios deste conflito apresentam, sem surpresa, questões jurídicas igualmente complexas. Como tal, interessa-nos conhecer as potenciais consequências jurídicas deste conflito ao nível do espaço e, também, os impactos para cooperação internacional nesta matéria.

A invasão russa da Ucrânia provocou, além do óbvio flagelo para o povo ucraniano, reações imediatas por parte da comunidade internacional, com destaque para a União Europeia (UE), para os Estados Unidos América (EUA) e, no geral, os países membros da aliança atlântica (NATO). A resposta – firme, global e sem precedentes – é visível, entre tantos, nos planos político, económico ou diplomático.

No tocante aos assuntos do espaço, as primeiras notícias sobre possíveis consequências no domínio espacial surgiram ainda no final do mês de fevereiro, através de vários tweets[1] publicados pelo presidente da Agência Espacial Russa (Roscomos), Dmitry Rogozin, sobre a Estação Espacial Internacional (ISS). Em resposta às pesadas sanções económicas impostas pela Administração Biden, a Roscomos ameaçou[2] desconectar os sistemas de propulsão do módulo russo o que, segundo o seu presidente, poderia causar uma saída descontrolada da órbita da ISS e, em consequência, atingir a superfície terreste.

Esta posição da Roscomos não constituiu propriamente uma novidade: já tinha sido assim em 2014[3], então face a sanções económicas norte-americanas e, de novo, em 2021[4]. Aliás, como se sabe, o ano passado ficou marcado pelo posicionamento hostil e provocador da Rússia, extensível também ao espaço. Em novembro[5], a partir de objetos espaciais russos em órbita, foi disparado um míssil antissatélite com vista à destruição de um satélite russo que se encontrava inativo, o que originou milhares de detritos espaciais e colocou em risco a ISS. Este episódio mereceu a condenação generalizada de países ocidentais, em particular de potências espaciais, como os EUA[6], o Reino Unido ou a França. Este comportamento da Rússia, pela sua gravidade, gerou, por razões óbvias, o alarme na comunidade internacional, ainda para mais quando poderá estar em causa a violação de normas do Tratado do Espaço Exterior (1967). Com efeito, prevê o seu artigo IV, no primeiro parágrafo, que os Estados Parte “se comprometem a não colocar em órbita nenhum objeto portador de armas nucleares, nem nenhum outro tipo de armas de destruição maciça, a não estacionar tais armas nos corpos celestes e a não colocar tais armas no espaço exterior em nenhuma outra forma”.

A Rússia, um dos Estados Parte – à época, União Soviética, que não foi só um dos primeiros Estados a ratificar o Tratado, mas também participou ativamente nas negociações, redação e adoção final do texto – ao colocar em órbita um objeto espacial capaz de disparar um míssil antissatélite, violou, com toda a probabilidade, a obrigação que resulta daquele artigo IV, precisamente porque dispõe de objetos espaciais em órbita que possuem a capacidade de interferir, e até destruir, outros objetos espaciais.

Mas, retomando à ISS, um eventual cenário de descontrolo em órbita e queda na superfície terrestre tem sido afastado pela NASA. Cumpre referir que a ISS está em pleno funcionamento desde o final da década de noventa e é, porventura, o maior símbolo da cooperação internacional no espaço.

O Acordo Intergovernamental, datado de 1998 – um convénio multilateral com a participação dos EUA, da Rússia, Agência Espacial Europeia (ESA), do Canadá e do Japão – assim o diz, cujo objetivo é o de “estabelecer um quadro de cooperação internacional a longo prazo entre os parceiros, com base numa verdadeira parceria, para a conceção, desenvolvimento, operação e utilização de uma Estação Espacial internacional civil permanentemente habitada para fins pacíficos, em conformidade com o Direito Internacional” (artigo 1.º, n.º 1). Pois então, num cenário de intenção deliberada da Rússia em abandonar a ISS – desconectando os sistemas de propulsão controlados da ISS – e, em consequência, colocando em perigo os astronautas a bordo da ISS e, bem assim, viesse esta a cair, de forma descontrolada, na superfície terrestre, quais são as principais consequências jurídicas em cima da mesa?

Num primeiro plano, o Acordo Intergovernamental, no seu artigo X, impõe um dever geral, extensível a todos os parceiros, em operar os elementos que respetivamente forneçam, “de forma segura, eficiente e eficaz”. Ou seja, apesar da ISS estar estruturada com base em diferentes módulos, cada um deles operado por parceiros distintos, todos eles são interdependentes, compreendendo-se, assim, o alcance desta norma. Num segundo plano, e com importância acrescida, o enquadramento jurídico relativo à ISS, “em conformidade com o Direito Internacional”, tem em conta os tratados internacionais para o espaço, como, aliás, consta do preâmbulo. Falamos do Tratado do Espaço Exterior (1967), do Acordo de Salvamento (1968), da Convenção de Responsabilidade (1972) e da Convenção de Registo (1975).

No tocante ao Tratado do Espaço Exterior, o artigo IX impõe um dever semelhante ao do artigo X do Acordo Intergovernamental, i.e., “na exploração e utilização do espaço exterior (…), os Estados Partes no Tratado orientar-se-ão pelo princípio de cooperação e assistência mútua e conduzirão todas as suas atividades (…) com a devida consideração [“due regard”] correspondentes interesses de todos os outros Estados Partes no Tratado”. Este mesmo artigo IX impõe, inclusive, um dever de consulta prévia junto dos restantes parceiros antes de ser realizada qualquer atividade que, potencialmente, possa causar uma interferência danosa (”harmuful interference”). Por outro lado, os astronautas em órbita, neste caso a bordo da ISS, são considerados “enviados da Humanidade” (“envoys of mankind”), e a todos os Estados Parte é imposto o dever de prestar a “assistência possível em caso de acidente (…) ou aterragem de emergência no território de outro Estado Parte ou no alto mar” – nos termos do artigo V do Tratado do Espaço Exterior –, prevendo o Acordo de Salvamento, além do mais, o dever de “prestar assistência, se necessário, em operações de busca e salvamento da tripulação” aos astronautas dos restantes Estados Parte (artigo 3.º.).

Em matéria de eventuais danos, o artigo VII do Tratado do Espaço Exterior e a Convenção de Responsabilidade estabelecem o regime jurídico por danos causados por objetos espaciais na superfície terrestre, no espaço aéreo ou no espaço exterior. Em detalhe, o artigo II da Convenção de Responsabilidade apresenta um duplo sistema de responsabilidade: (i) objetiva, quanto a danos causados na superfície da Terra e em aeronaves em voo e (ii) subjetiva, no caso de danos causados em objetos espaciais que não se encontrem na superfície terrestre e a pessoas a bordo de tais objetos espaciais. O sistema da Convenção assenta no critério de “Estado de lançamento” [artigo I, alínea c)], no entanto, tendo em conta as características da ISS, tal poderá comportar dificuldades na identificação de determinado Estado, visto que, na prática, estão em causa múltiplos objetos espaciais (registados por cada um dos parceiros intervenientes), acoplados entre si, pelo que, no caso de uma eventual queda da ISS na superfície terrestre, a determinação concreta e imputação formal da(s) responsabilidade(s) apresentaria, certamente, sérios obstáculos. Face a isto, a solução gizada no Acordo Intergovernamental passou por adotar um mecanismo de “cross-waiver of liability”, uma “isenção recíproca de responsabilidade” entre todas as partes (artigo 16.º, n.º 1), com as devidas exceções: não será aplicável, entre outros, no caso de danos causados por “deliberada má conduta” (artigo 16.º, n.º 3, alínea d), (3)), aqui certamente incluída uma intensão dolosa, por parte da Rússia, em fazer desligar os sistemas de propulsão da ISS, no módulo que é responsável por operar. Tudo somado: uma ação deliberada da Rússia, desativando intencionalmente o seu módulo, com consequente saída de órbita da ISS e eventual queda na superfície terrestre, imporia a todos os parceiros da ISS a responsabilidade conjunta e solidária pelos danos causados, contudo, sem prejudicar o direito de regresso dos demais parceiros, contra a Rússia, nos termos gerais da Convenção de Responsabilidade.

Ainda a propósito do conflito na Ucrânia, cabe referir o tema do Starlink. Esta mega constelação de satélites, ainda em fase de desenvolvimento, disponibiliza serviços de internet por satélite, e é operada pela empresa privada norte-americana Space X. Nos primeiros dias do conflito, no seguimento de alegadas interferências russas nas comunicações e serviços de internet governamentais e dos serviços secretos ucranianos, o vice-primeiro-ministro ucraniano apelou[7] à Space X para que viesse em auxílio da Ucrânia: dois dias depois, as estações terrestres do Starlink já se encontravam[8] em território ucraniano, fornecendo, assim, serviços de internet – cuja medida e alcance são, até hoje, desconhecidos. Em resposta, o presidente da Roscomos afirmou[9] que, perante isto, tais objetos espaciais não possuiriam, afinal, uma mera utilização civil, ou seja, insinuando que o Starlink teria, no contexto do conflito russo-ucraniano, uma preponderância estratégico-militar, de apoio expresso a um dos beligerantes, neste caso, a Ucrânia. Do ponto de vista jurídico, a sensibilidade do tema é evidente: de acordo com o artigo VI do Tratado do Espaço Exterior, as atividades espaciais de entidades não-governamentais – incluindo, portanto, quaisquer privados – estão sujeitas à “autorização e contínua supervisão” dos respetivos países, tendo estes, inclusive, a “jurisdição e controlo” dos objetos espaciais que neles se encontrem registados (assim dita o artigo VIII do Tratado do Espaço Exterior, sendo, para o efeito, o respetivo “Estado de registo”, nos termos da Convenção de Registo). Por esta via, não surpreenderia que a Rússia considerasse o Starlink como não tendo apenas uma utilização civil (o que, em rigor, já o fez), reconhecendo que está em causa um objeto espacial privado, todavia registado nos EUA, cabendo a este último, responder pelas consequências dos atos praticados pela Space X, em seu entender, de apoio expresso e explícito ao governo ucraniano. Neste contexto, atendendo ao posicionamento político-estratégico da Rússia, poderia esta interpretar que o Starlink teria “objetivos militares” e, ao abrigo do Direito da Guerra (vide, as Convenções de Genebra), constituir um alvo militar, conferindo legitimidade à Rússia para neutralizá-lo? O debate está lançado, ainda para mais, atendendo à capacidade militar russa em órbita, demonstrada no final de 2021, como demos nota nos primeiros parágrafos.

Se muitas das hipóteses jurídicas desconhecem, para já, resultados concretos, há um outro aspeto seriamente comprometido pelo atual contexto: o da cooperação internacional. A cooperação internacional no espaço é, sem qualquer dúvida, o elemento base que permitiu alcançar objetivos históricos e de extrema importância. A título de exemplo, note-se que o Tratado do Espaço Exterior faz referência à cooperação internacional no seu preâmbulo e, em boa verdade, tem sido a peça chave no percurso dos últimos trinta anos após a dissolução da União Soviética. No que ao espaço diz respeito, a ISS é, porventura, o maior e mais destacado exemplo da cooperação internacional, porém, há muitos outros exemplos onde a colaboração, tanto de países como de organizações internacionais, é essencial às atividades espaciais. No presente, a invasão da Ucrânia, orquestrada pela Rússia, contribui negativamente para cooperação internacional em todos os domínios, incluído o espacial, desde logo nos projetos onde esta participa. O exemplo da ISS é prova disto – apesar do profissionalismo e camaradagem entre os astronautas – sendo ainda incertos os próximos capítulos até 2031, ano em que a ISS será descontinuada, como referiu[10] a NASA, a escassas três semanas antes do início do conflito. À escala europeia, a ESA anunciou[11] a suspensão do ExoMars, uma missão não tripulada destinada a explorar o planeta Marte, com colaboração da Roscomos. Por outro lado, em relação à aviação civil, a Agência Europeia para a Segurança da Aviação (EASA) adotou[12] medidas de mitigação para possíveis dificuldades dos sistemas globais de navegação por satélite (GNSS) em áreas geográficas em redor da zona de conflito. Por fim, na perspetiva da segurança e defesa, antevê-se uma estratégia de reforço da capacidade espacial neste sentido, também na União Europeia, em linha com as recentes conclusões[13] do Conselho.

Muitas outras questões jurídicas se levantam, mas uma coisa é certa: o espaço é um domínio fundamental do presente e do futuro e, mais do que nunca, os próximos capítulos certamente merecerão o interesse e atenção da comunidade internacional.


[1] https://twitter.com/Rogozin/status/1496933548372209669, 24.02.2022.

[2] “Guerra das Estrelas: o palco para “a mesquinhez de um pequenino homem com muito poder a brincar com fósforos” e armas espaciais”, Expresso, 24.03.2022, https://expresso.pt/guerra-na-ucrania/2022-03-24-Guerra-das-Estrelas-o-palco-para-a-mesquinhez-de-um-pequenino-homem-com-muito-poder-a-brincar-com-fosforos-e-armas-espaciais-4ac93732

[3] “Russia Threatens To Cut Ties to International Space Station Over U.S. Sanctions”, Time, 14.05.2014, https://time.com/99509/russia-threatens-nasa/

[4] “Russian Space Chief Says U.S. Sanctions Keep Satellites Grounded”, Bloomberg, 07.06.2021, https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-06-07/russian-space-chief-says-u-s-sanctions-keep-satellites-grounded

[5] “Debris From Test of Russian Antisatellite Weapon Forces Astronauts to Shelter”, New York Times, 15.11.2021, https://www.nytimes.com/2021/11/15/science/russia-anti-satellite-missile-test-debris.html

[6] “US says it ‘won’t tolerate’ Russia’s ‘reckless and dangerous’ anti-satellite missile test”, CNN, 16.11.2021, https://edition.cnn.com/2021/11/15/politics/russia-anti-satellite-weapon-test-scn/index.html

[7] https://twitter.com/FedorovMykhailo/status/1497543633293266944, 26.02.2022

[8] “Elon Musk’s Starlink arrives in Ukraine but what next?”, BBC News, 01.03.2022, https://www.bbc.com/news/technology-60561162

[9] “How will Ukraine keep SpaceX’s Starlink internet service online?”, MSN, 03.03.2022, https://www.msn.com/en-gb/entertainment/news/how-will-ukraine-keep-spacexs-starlink-internet-service-online/ar-AAUz90O?ocid=BingNewsSearch

[10] “NASA plans to retire the International Space Station by 2031 by crashing it into the Pacific Ocean”, CNN, 02.02.2022, https://edition.cnn.com/2022/02/02/world/nasa-international-space-station-retire-iss-scn/index.html

[11] N° 9–2022: ExoMars suspended”, European Space Agency, 17.03.2022, https://www.esa.int/Newsroom/Press_Releases/ExoMars_suspended

[12] “EASA publishes SIB to warn of intermittent GNSS outages near Ukraine conflict areas”, Agência Europeia para a Segurança da Aviação, 17.03.2022, https://www.easa.europa.eu/newsroom-and-events/news/easa-publishes-sib-warn-intermittent-gnss-outages-near-ukraine-conflict?utm_campaign=d-20220318&utm_term=pro&mtm_source=notifications&mtm_medium=email&utm_content=title&mtm_placement=content&mtm_group=easa_news

[13] “Uma Bússola Estratégica para reforçar a segurança e a defesa da UE ao longo da próxima década”, Conselho da União Europeia, 21.03.2022, https://www.consilium.europa.eu/en/press/press-releases/2022/03/21/a-strategic-compass-for-a-stronger-eu-security-and-defence-in-the-next-decade/

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