Uso militar do espaço: uma realidade internacional
Webert Barreto
No campo militar, o artigo IV do Tratado do Espaço de 1967 traz uma referência ampla ao termo “fins pacíficos”. No entanto, ao ler atentamente este artigo, pode-se concluir que os fins pacíficos se aplicam apenas a atividades na Lua e outros corpos celestes.
No que diz respeito à Terra, por exemplo, a única proibição está relacionada à colocação em órbita ao redor da Terra de qualquer objeto que carregue armas nucleares ou quaisquer outros tipos de armas de destruição em massa, que instale tais armas em corpos celestes ou que coloque tais armas no espaço de qualquer outra maneira. A ideia se mostra mais intensa ao desarmamento do que ao uso pacífico.
Todavia, essa obrigação limitada não responde às realidades técnicas, pois a humanidade, para os fins pacíficos, deve considerar todos os tipos de armamento, mesmo os que não existam, planejados ou não planejados, em 1967 ou hoje. Há quem defenda,[1] portanto, que se algo deve ser feito, é esclarecer e ampliar o conteúdo deste artigo à luz do direito internacional, incluindo a Carta e também algumas outras disposições acordadas na Conferência de Desarmamento.
Nesse ponto, é essencial entender o que as atividades militares no espaço sideral realmente compreendem.
O termo atividade espacial militar refere-se à utilização de capacidades espaciais para apoiar operações militares que ocorrem na Terra, a exemplo de sistemas baseados no espaço que permitem uma navegação precisa, fornecimento de dados meteorológicos em tempo real, comunicações globais instantâneas, alertas sobre possíveis ameaças de mísseis, vigilância e reconhecimento.[2]
No cenário americano, a Joint Publication 3-14,[3] que traz a visão geral das operações espaciais dos Estados Unidos, define as operações espaciais como “aquelas que impactam ou utilizam diretamente capacidades espaciais e terrestres para aumentar o potencial dos Estados Unidos e dos parceiros multinacionais.”
Na França, as operações espaciais militares abrangem todas as atividades realizadas “por ou para o Ministério das Forças Armadas no, de e para o espaço, a fim de garantir a disponibilidade, rastreamento, segurança e proteção das capacidades e serviços espaciais de interesse nacional.”[4]
Para efeitos do Manual sobre Direito Internacional Aplicável ao Uso Militar do Espaço Exterior da Universidade de McGill, “na determinação do caráter militar de uma atividade espacial, os intervenientes envolvidos na atividade, os objetivos da atividade e os efeitos da atividade devem ser tidos em conta, conforme apropriado.”[5]
O Manual de Oxford de Direito Internacional de Segurança Global, que fornece uma visão de que atividade espacial militar, “refere-se ao reforço das capacidades num ambiente convencional, por exemplo, os sistemas de inteligência, vigilância e comunicações.”[6]
A Doutrina Básica da Força Aérea Brasileira (DCA 1-1) conceitua Operação Aeroespacial como um “[c]onjunto coordenado de Tarefas e Ações de Força Aérea, que têm por objetivo empregar o Poder Aeroespacial para o cumprimento de missões específicas atribuídas por autoridade competente.”[7]
Embora possa existir uma minoria de estudiosos jurídicos que considere tal militarização do espaço uma violação das regras da lei espacial, o fato é que existe uma maioria esmagadora de especialistas[8] que considera as atividades militares no espaço compatíveis com o regime jurídico internacional. A prática estatal, também, se inclina para a legalidade desse tipo de uso militar do espaço sideral.[9]
Em vez disso, o termo armamentização[10] é usado com referência ao desdobramento de armas de natureza ofensiva no espaço ou no solo com o alvo pretendido localizado no espaço.
Para Freeland e Gruttner,[11] a armamentização do espaço exterior se caracteriza pela “implantação física de armas no espaço sideral, ou em modo terrestre que pode ser usado para atacar e destruir alvos em órbita.”
A legalidade desses tipos de operações é rejeitada pela maioria dos Estados, devido à sua inconsistência com os princípios básicos do Direito Internacional Público e do Direito Espacial. Cabe mencionar que a colocação e eventual utilização de armas de natureza defensiva e ofensiva no espaço sideral pode ter efeitos desestabilizadores, o que tem sido objeto de estudos nas Assembleias das Nações Unidas, a exemplo da resolução da ONU de prevenção de uma corrida armamentista no espaço sideral que reafirma os princípios fundamentais do Tratado do Espaço Exterior de 1967 e defende a proibição do armamento do espaço.[12]
Sobre isso, o tema PAROS (Prevention of an Arms Race in Outer Space), ou seja, a Prevenção de uma Corrida Armamentista no Espaço Exterior, tem estado presente na ONU por meio da Conferência do Desarmamento com o objetivo de prevenir uma corrida armamentista no espaço exterior. A ONU discute a Prevenção de tal “corrida” no espaço sideral por meio de projetos de Resolução[13] em que reafirma a importância e a urgência de prevenir esta situação no espaço exterior e a disponibilidade de todos os Estados para contribuir para esse objetivo comum, em conformidade com as disposições do Tratado do Espaço Exterior de 1967.
A bem da verdade, as atividades espaciais militares começaram com a observação por satélite para fins de reconhecimento e vigilância, que logo foram complementadas por satélites militares, dentre outros, de comunicação, de navegação, de previsão do tempo, de altimetria e de medições geodésicas. Os resultados dessas atividades se refletem na produção de dados para a navegação aérea, terrestre e marítima, bem como para a orientação de sistemas de armas, posicionamento de alvos e outras operações militares.[14]
O uso militar do espaço, dessa forma, não representa uma força de ataque distinta por si só, de maneira que parece equivocado simplesmente postular que o espaço sideral foi militarizado, sem ao mesmo tempo destacar o caráter não combativo dos sistemas espaciais militares existentes. Dada a existência paralela de sistemas espaciais militares e civis e a preponderância destes últimos, também não se pode afirmar que as atividades no espaço sideral receberam um caráter militar generalizado.
Quando Cheng[15] discute a legalidade do uso do espaço para fins militares sob os ditames do Direito Internacional e dos acordos internacionais relevantes, aponta que a lei representa a vontade da parte dominante da sociedade, ou seja, a parte que tem a intenção, a vontade e a capacidade (que não precisa ser necessariamente militar, mas pode ser econômica, religiosa, moral ou de outra natureza) de fazer prevalecer sua vontade. Ocorre que do ponto de vista jurídico, a sociedade internacional é horizontal em sua estrutura, diversa da organização hierárquica nas sociedades nacionais, em que o Estado exerce poderes legislativos, judiciais e executivos. Desse modo, no cenário internacional, os Estados permanecem essencialmente seus próprios legisladores, juízes e aplicadores do Direito Internacional, de modo que qualquer violação de ato só pode ser tornada ilegal pelo consentimento dos Estados envolvidos, incluindo a seção dominante da sociedade internacional, na forma de direito internacional geral ou o que é tradicionalmente chamado de direito internacional consuetudinário.
Com isso, o autor escreve claramente que as regras de Direito Internacional, incluindo tratados sobre questões delicadas, como limitação de armas, geralmente operam no nível auto interpretativo, sendo o uso militar do espaço um exemplo.
Para qualquer consideração política e legal dos atuais usos do espaço militar, é essencial reconhecer que o atual regime legal para usos militares do espaço é um legado da era da Guerra Fria, instituído no auge do confronto EUA/União Soviética para servir aos interesses das duas superpotências nucleares.
Ocorre que o ambiente espacial ficou moldado como um meio de importância vital para a preservação da contenção nuclear e dissuasão por proibir o teste e o emprego de armas nucleares no espaço, estabelecer o princípio do sobrevoo irrestrito do satélite, estender a liberdade de espaço aos satélites militares especialmente para fins de vigilância e por abster-se de fixar um limite normativo entre o ar e o espaço exterior.
Nesse aspeto, “o apoio espacial militar em todas as suas formas, e apesar de seus efeitos de aumento de força, é comumente reconhecido como um novo ramo do avanço militar moderno, cujo potencial deve ser totalmente explorado. É a perspectiva possível de empregar o espaço sideral para fins ofensivos, de militarizar o ambiente espacial da Terra em sentido verdadeiro, que suscita preocupação e encontra desaprovação.”[16]
Assim, o papel de apoio dos satélites militares ampliou-se e intensificou-se, mas não ocorreu uma implantação consecutiva de uma regulamentação clara. O uso militar do espaço, embora não detalhadamente abordado, foi sancionado pelo Tratado do Espaço Exterior de 1967, porém, do ponto de vista formal, não há um corpo consistente de lei espacial militar internacional. Uma coisa é certa: usar militarmente o espaço, desde o seu início, tem sido notavelmente constante.
É importante rememorar que os Estados Unidos e a União Soviética procuravam, no cenário da Guerra Fria, reconhecer a dependência da capacidade de coletar informações por meios técnicos mais eficientes, fazendo com que as estratégias políticas e diplomáticas começassem a se desenvolver em relação ao espaço exterior para a proteção da legalidade de coleta de inteligência por satélite. Essas preocupações que se tornaram reais depois que a União Soviética lançou o Sputnik I, o primeiro satélite artificial do mundo, em 1957, que transformou o sonho da exploração espacial em realidade. O lançamento do Sputnik marcou o início da exploração do espaço e com ela o início do debate em torno da militarização do espaço sideral.[17]
Além da exploração e da pesquisa científica, o espaço é usado principalmente pela perspetiva que oferece. Isso é feito com a ajuda dos satélites. A indústria de satélites é o maior setor de espaço comercial de hoje. Os satélites em órbita, por exemplo, facilitam a comunicação entre pontos distantes em Terra. No entanto, o espaço também se tornou uma ferramenta militar importante. Os satélites capacitam os olhos e os ouvidos das imagens militares de hoje – assim é que, a a tal ponto que se um satélite em órbita de um país for destruído, a sua capacidade militar será reduzida drasticamente. Em verdade, a Era Espacial começou por uma estratégia militar com forte personalidade voltada aos alvos e aos projetos essenciais (bases da Guerra Fria). E, certamente, esse uso militar do espaço é uma realidade que merece o interesse e a atenção da comunidade internacional.
Como citar
Webert Barreto, “Uso militar do espaço: uma realidade internacional”, SPARC Blog, 29 de novembro de 2023, disponível em: https://sparc.cedis.fd.unl.pt/uso-militar-do-espaco-uma-realidade-internacional/
[1] LAFFERRANDERIE, G. Basis “Principles Governing the Use of Outer Space in Future Perspective”. In: BENKÖ, M.; SCHROGL, K. Space Law: Current Problems and Perspectives for Future Regulation. Netherlands: Eleven International Publishing, 2005. p. 5-28.
[2] SCHMITT, M. N. “International Law and Military Operations in Space”. In: BOGDANDY, A. V.; WOLFRUM, R. Max Planck Yearbook of United Nations Law. Netherlands: Brill, 2006. p. 89-125.
[3] UNITED STATES. “Joint Publication 3-14 Space Operation”s. U.S. Department of Defense. Washington, p. 96. 2020.
[4] RÉPUBLIQUE FRANÇAISE. Space Defence Strategy. The French Ministry for the Armed Forces. Paris, p. 31. 2019.
[5] JAKHU, R. S; FREELAND, S. McGill Manual on International Law Applicable to Military Uses of Outer Space. Montreal: Centre for Research in Air and Space Law, v. I, 2022.
[6] FREELAND, S.; GRUTTNER, E. Outer Space Security. In: GEIB, R.; MELZER, N. The Oxford Handbook of the International Law of Global Security. Oxford: Oxford University Press, 2021. p. 679-696.
[7] Disponível em: https://www2.fab.mil.br/unifa/ppgca/images/conteudo/D-QBRN/DCA_1-1_DOUTRINA_BSICA_DA_FORA_AREA_BRASILEIRA_-_VOLUME_1_2020.pdf
[8] Ibidem 5.
[9] DUNK, F. V. D.; TRONCHETTI, F. Handbook of Space Law. Cheltenham: Edward Elgar Publishing Limited, 2015.
[10] Tradução do autor para a expressão weaponization.
[11] Ibidem 6.
[12] UNITED NATIONS OFFICE FOR OUTER SPACE AFFAIRS. Doc. A/36/97. Prevention of an arms race in space. United Nations Office for Outer Space Affairs, 1981. Disponível em: https://www.unoosa.org/pdf/gares/ARES_39_59E.pdf. Acesso em: 8 ago. 2023.
[13] UNITED NATIONS OFFICE FOR OUTER SPACE AFFAIRS. Doc. A/RES/76/22. Prevention of an arms race in outer space. United Nations Office for Outer Space Affairs, 2021. Disponível em https://digitallibrary.un.org/record/3948786. Acesso em: 24 ago. 2023.
[14] KRIES, W. V. Legal Aspects of the Growing Military Uses of Outer Space In: BENKÖ, M.; SCHROGL, K. Space Law: Current Problems and Perspectives for Future Regulation. Netherlands: Eleven International Publishing, 2005. p. 141-154.
[15] CHENG, B. Studies in International Space Law. New York: Oxford University Press, 1997.
[17] WOLFF, J. M. ‘Peaceful uses’ of outer space has permitted its militarization – does it also mean its weaponization? United Nations Institute for Disarmament Research (UNIDIR). Disarmament Forum, Geneva, 2003. 5.14.